A revista científica British Medical Journal (BMJ) diz que pouco foi feito na última década para aumentar a transparência dos ensaios clínicos de vacinas e medicamentos.
“Hoje, apesar da distribuição global de vacinas e tratamentos contra a Covid-19, os dados de participantes anónimos que alimentam os testes destes novos produtos, continuam inacessíveis a médicos, investigadores e ao público — e o mais provável é que se mantenham assim nos próximos anos. Isto é moralmente indefensável para todos os ensaios, mas especialmente para os que envolvem grandes intervenções de saúde pública”, escreve a publicação, num artigo publicado a 19 de janeiro.
O BMJ foca-se, em particular, nos testes feitos pela Pfizer que, diz, juntamente com outra organização contratada pela ajudar com a investigação, controla todos os dados obtidos. Só em 2025, 24 meses depois de o estudo principal ter terminado, é que a farmacêutica vai começar a receber pedidos de acesso aos dados. A Moderna diz que o vai fazer em finais de 2022.
Obter dados relacionados com terapêuticas para a Covid-19 é igualmente difícil. O BMJ dá como exemplo os relatórios sobre os ensaios clínicos da fase III do medicamento Regeneron, onde se lê que “os dados sobre os participantes não vão ser disponibilizados”.
“Isto é preocupante para participantes em testes, investigadores, clínicos, editores de publicações, decisores políticos, e para o público (…) Os dados anónimos sobre participantes individuais têm de ser disponibilizados para escrutínio independente”, escreve o BMJ.
A revista científica apela também a mais transparência nos processos de decisão: “Os reguladores e órgãos de saúde pública podem divulgar pormenores, como o motivo por que os ensaios [clínicos] das vacinas não foram desenhados para testar a eficácia contra a infeção e contágio do SARS-CoV-2. Se os reguladores tivessem insistido nesta questão, os países teriam percebido mais cedo qual é o efeito das vacinas na transmissão, e seriam capazes de planear de forma mais adequada”.
O artigo aponta também o dedo aos fabricantes, “a indústria menos confiável”, dizendo que pelo menos três empresas que produzem vacinas contra a Covid-19 fizeram acordos extrajudiciais que lhes custaram “milhares de milhões de dólares”.
Com a contínua distribuição de vacinas contra a Covid-19 em todo o mundo, “não é justificável, ou no interesse supremo dos pacientes e do público, que nos reste apenas confiar no sistema, com a ténue esperança que os dados brutos possam ser disponibilizados para escrutínio independente nalgum momento no futuro”, diz o BMJ.
A revista britânica sublinha que só com a divulgação dos dados brutos, ao mesmo tempo que são publicados os resultados dos ensaios clínicos, é que possível responder às “legítimas questões das pessoas sobre a eficácia e segurança de vacinas e tratamentos”, e só deste modo se conseguem delinear boas políticas de saúde pública.
Esta não é a primeira vez que o BMJ aponta baterias aos fabricantes de vacinas. No ano passado, a publicação envolveu-se num acesso conflito com o Facebook — que tem uma rede de fact checking à qual o Observador pertence —, na sequência de um artigo sobre falhas nos ensaios clínicos da Pfizer.
O BMJ não aceitou uma classificação de “falta de contexto” aplicada pela rede de fact checking do Facebook a um artigo seu, e acusa a rede social de estar a “censurar jornalismo absolutamente rigoroso.”
A polémica tem origem num artigo de novembro de 2021, com uma denúncia grave: a revista científica alertou que uma empresa responsável por vários estudos sobre a vacina da Pfizer, contra a Covid-19, podia ter falsificado dados e distorcido resultados.
A denúncia foi feita ao BMJ pela diretora regional da empresa em causa, a Ventavia, que revelou casos de dados falsificados, pacientes que sabiam se estavam a tomar a vacina ou o placebo (contrariando as regras dos ensaios clínicos), vacinadores sem formação adequada e lentidão a acompanhar reações adversas nos testes da fase III da vacina da Pfizer.
“O pessoal que fazia as verificações de controlo de qualidade estava assoberbado com o volume de problemas que encontrou”, escreveu a BMJ, em novembro, num artigo intitulado “Covid-19: Investigador denuncia problemas de integridade de dados em teste à vacina da Pfizer”.
Após notificarem repetidamente a Ventavia acerca destes problemas, a diretora regional, Brook Jackson, enviou um email ao regulador norte-americano do medicamento (FDA, Food and Drug Administration). Brook foi despedida pela Ventavia no mesmo dia, diz o BMJ, a quem a responsável entregou dezenas de documentos internos da empresa.
Mas a história não ficou por aqui: nos dias seguintes, os leitores do BMJ começaram a dar conta de dificuldades na partilha do artigo no Facebook, recebendo alertas de que continha informação falsa. Este foi o resultado a verificação feita pelo portal Lead Stories, uma de dez empresas de ‘Fact Check’ contratadas pelo Facebook nos Estados Unidos.
O BMJ contactou o Lead Stories, que manteve a classificação de “falta de contexto” que tinha dado ao artigo. Em resposta, a publicação científica escreveu uma carta aberta a Mark Zuckerberg, pedindo que permitisse a partilha do artigo sem dificuldades e alertas. Estava aberta uma guerra.
Não foi o Facebook que respondeu ao BMJ, mas sim o Lead Stories, também em carta aberta. O portal alicerçou a sua posição em dois pontos: em primeiro lugar considerou que o título, e algumas partes relevantes do artigo, exagerava os perigos e desqualificava de forma injusta os dados obtidos nos testes da Pfizer; em segundo, pôs em causa a credibilidade da denunciante, indicando que noutras circunstâncias manifestou dúvidas sobre as vacinas contra a Covid-19 em redes sociais. O Lead Stories considerou que o artigo estava a ser usado em campanhas para desacreditar a eficácia das vacinas.
Fuente Observador