“Estes algoritmos são ainda experimentais, sabemos muito pouco sobre eles. Não são públicos e não sabemos absolutamente nada sobre a margem de erro que podem conter. Por isso, é provável que muitas conversas inocentes entre adolescentes ou entre adultos sejam falsamente divulgadas”, avisa o eurodeputado, que acrescenta que “é muito perigoso não sabermos nada sobre as tecnologias que podem vir a ser usadas para monitorizar as comunicações”. Por enquanto, sabe-se apenas que as empresas de comunicação vão ser parte importante no desenvolvimento dos softwares, até porque vão ser obrigadas a fazer esta monitorização. Até agora, e desde julho de 2021, está em vigor uma lei semelhante a esta proposta, mas com uma pequena grande diferença: as plataformas não eram obrigadas a vigiar as comunicações, mas podiam fazê-lo numa base voluntária. Com o cariz obrigatório que a proposta determina, chegam as críticas.
O artigo 28.º, alínea c) da proposta apresentada, estabelece que as empresas que se recusem a monitorizar as mensagens privadas dos seus utilizadores serão penalizadas com uma multa. No documento não é mencionado o valor dessa multa, mas diz o jornal Político que pode chegar aos 6% da receita global anual da empresa. A título de exemplo, se o Twitter — que teve quase 5 mil milhões de euros de receita em 2021 — se recusar a vigiar as comunicações dos seus utilizadores, terá de pagar uma multa de quase 300 milhões de euros. Do WhatsApp, chegaram os primeiros sinais de revolta: o diretor da plataforma, Will Cathcart, considera que a ideia é “errada e incoerente com o compromisso da União Europeia” e que pode ser “usada para atacar os direitos humanos de muitas maneiras diferentes em todo o mundo”. Contactada pelo Observador, a Google preferiu não fazer comentários sobre a proposta. Já o Grupo Meta — que detém o Facebook, Instagram e WhatsApp –, também em resposta ao Observador, admite que está “ansioso” por trabalhar com a UE, mas ressalva a importância de que “quaisquer medidas adotadas não prejudiquem a encriptação ponto-a-ponto, que protege a segurança e a privacidade de milhões de pessoas, incluindo crianças”. E por falar nelas: independentemente de todos estes receios… será esta proposta eficaz no combate ao abuso sexual de menores?
Incredibly disappointing to see a proposed EU regulation on the internet fail to protect end-to-end encryption. https://t.co/1W1HixQUVJ
— Will Cathcart (@wcathcart) May 11, 2022
O Observador falou com Paulo Pelixo. É psicólogo e diretor-executivo da Associação para o Planeamento da Família. Dedicou grande parte da vida profissional à área da intervenção em abuso sexual infantil. Olhando para a proposta da Comissão Europeia, não tem dúvidas: a proposta é “muito válida”, principalmente numa altura destas. “Devemos encontrar soluções de forma urgente, até porque tem havido um aumento no número de denúncias e de vítimas de abuso desde o início da pandemia”, explica. Em 2021, a Fundação Internet Watch registou um aumento de 64%, em comparação com 2020, nas denúncias confirmadas de abusos sexuais de crianças. Também no ano passado, diz a Comissão Europeia, foram denunciadas 85 milhões de imagens e vídeos de alegados abusos sexuais de crianças.
Números que apelam à urgência e à adoção de medidas fortes, diz Paulo Pelixo: “É uma problemática que exige medidas muito consistentes e por vezes, talvez, até duras para promovermos o combate a este fenómeno”. Do lado da defesa dos direitos digitais e da privacidade dos utilizadores, não há dúvidas da gravidade do fenómeno e da necessidade de proteger as crianças. Há dúvidas, sim, quanto à eficácia da proposta e do extremismo da medida. O eurodeputado alemão Patrick Breyer diz ao Observador que de acordo com a Polícia Federal Suíça, 87% das denúncias recebidas pelo método de “hashing” são “criminalmente irrelevantes”. Além disso, assegura que “não há provas de que esta estratégia sustenha a difusão da pornografia”, usando o exemplo do Facebook: “Eles já fazem monitorização das conversas de forma voluntária há alguns anos e as denúncias reportadas continuam a aumentar em cada ano”, garante o membro do Partido Pirata Alemão.
???????? Why are the EU’s plans for #chatcontrol so dangerous? What could happen to your private holiday photos in the future if the law is passed? https://t.co/fta5P7Riva pic.twitter.com/prQobTFpL1
— Patrick Breyer #JoinMastodon (@echo_pbreyer) May 13, 2022
Ricardo Lafuente alinha com o eurodeputado. O vice-presidente da D3 aposta que a proposta “não terá qualquer efeito ou um efeito diminuto no combate à criminalidade” e que “os criminosos vão continuar a passar fora disto”, até porque muitos atacam e trabalham apenas em fóruns e redes privadas, muitas vezes até na deep e darkweb. Paulo Pelixo não nega essa realidade, mas lembra que uma parte da ação criminal acontece bem às claras e em espaços que todos conhecemos: “O aliciamento vai acontecer sempre que houver crianças. E nós sabemos exatamente que há crianças que são aliciadas, por exemplo, no Facebook, e noutras plataformas que todos utilizamos”. Por um lado, fica assim patente a importância da proteção das crianças, e por outro a importância do direito à privacidade. Numa balança, é difícil perceber qual pesa mais, mas à luz da lei haverá uma mais pesada que a outra?
No documento da proposta de regulamento, a Comissão Europeia não tem medo de assumir que o que está em causa é um dilema entre direitos: o direto à privacidade e o direito à proteção de menores. Logo na página cinco pode ler-se que a proposta quer “equilibrar de forma justa os vários direitos fundamentais em causa”, mas relembra também que em causa está “o contexto da luta contra o abuso sexual infantil online e a importância do interesse público em jogo”. Mais à frente, sublinha-se também que estes direitos não são absolutos, e por isso há margem para os limitar em situações extremas. E é aí que está a chave para a legalidade.
O Observador falou com João Ferreira Pinto. É advogado e foca-se na proteção de dados e cibersegurança. Foi ainda adido técnico na representação permanente de Portugal junto da União Europeia, durante a presidência portuguesa em 2021, e por isso mesmo teve um contacto próximo com a proposta da Comissão. Considera que o que está em causa é o “balanceamento de dois direitos fundamentais” e explica: “Para a proposta ser eficaz, tem de ser altamente intrusiva. E só há uma forma de o permitir, que é sacrificando até determinado ponto a nossa privacidade nas comunicações eletrónicas”. E esse “sacrifício” é legal? Sim, diz, mas apenas se “houver um regulamento ou uma legislação”. No fundo, acrescenta, a lei anda à volta de um dilema, em que é “preciso ponderar o que é mais importante: a nossa privacidade de comunicação ou o combate ao abuso sexual infantil”.
Fuente Observador