A morte do papa emérito Bento 16 foi sucedida por uma pequena produção literária, uma série de publicações que foram interpretadas como salvas na guerra civil da Igreja Católica.
A lista inclui um livro de memórias do antigo secretário de Bento que mencionou a decepção do ex-pontífice com a restrição de seu sucessor à missa em latim, uma coleção de ensaios póstumos do alemão que está sendo explorada em busca de citações polêmicas e uma entrevista do papa Francisco que virou notícia por seu apelo à descriminalização da homossexualidade em todo o mundo.
Em meio a todas essas palavras, duas intervenções merecem atenção especial. Uma não é exatamente nova, mas a revelação de seu autor aumenta sua importância: é um memorando, destinado aos cardeais que elegerão o sucessor de Francisco, que circulou pela primeira vez em 2022 e agora foi revelado pelo jornalista do Vaticano Sandro Magister como obra do cardeal George Pell, da Austrália, um importante clérigo conservador que morreu logo após Bento 16.
Começando com uma declaração simples de que o pontificado de Francisco foi uma “catástrofe”, o memorando descreve uma igreja caindo em confusão teológica, perdendo terreno para o evangelicalismo e o pentecostalismo, bem como para o secularismo, e enfraquecida por perdas financeiras, corrupção e governo papal sem lei. (Sobre o clima interno no Vaticano, Pell escreve: “O grampo telefônico é praticado regularmente. Não tenho certeza com que frequência ele é autorizado”.)
O outro é um longo ensaio de um colega de Pell, Robert McElroy, cardeal de San Diego, publicado esta semana na revista jesuíta “America”. Ele compartilha com o memorando de Pell a premissa de que a igreja enfrenta divisões internas debilitantes, mas argumenta que a divisão deve ser resolvida por meio da conclusão da revolução almejada pelos religiosos liberais.
Em particular, McElroy exorta a igreja a arquivar qualquer opinião significativa sobre relacionamentos sexuais e a abrir a comunhão a “todos os batizados”, supostamente incluindo protestantes. Apenas esse tipo de inclusão radical teria “qualquer esperança de atrair a próxima geração para a vida na igreja”.
O fato de as facções em disputa dentro do catolicismo terem pontos de vista muito diferentes não é uma revelação, mas ainda é impressionante vê-los declarados com tanta franqueza por cardeais importantes: a crítica direta de Pell ao papado de Francisco e a franqueza de McElroy sobre seus objetivos liberais deixam claro o que muitas vezes é obscurecido pela retórica.
Não apenas sua substância é esclarecedora, mas também seu estilo. Na lista concisa e brusca de Pell, podemos ver uma condensação do alarme conservador sobre a situação da igreja. Nos apelos mais expansivos de McElroy por “diálogo” e “discernimento”, pode-se ver a confiança de um catolicismo progressista que assume que qualquer diálogo só pode conduzir em uma direção.
Na distância entre seus pressupostos, que começam com diferentes análises sociológicas de por que a igreja está lutando e terminam com um vasto abismo doutrinário, sente-se a sombra do cisma pairando sobre a igreja do século 21. McElroy não é um teólogo radical; Pell não era um reacionário marginal. Estas são figuras tradicionais que trabalham no coração da hierarquia católica e, no entanto, a lacuna entre suas visões de mundo parece capaz de colocá-los em ramos totalmente diferentes da fé cristã.
Apesar de todo o seu inegável conservadorismo, um objetivo consistente para Bento 16, assim como para João Paulo 2o, foi algum tipo de síntese para a igreja moderna, na qual as mudanças introduzidas pelo Concílio Vaticano 2o (1962) pudessem ser integradas aos compromissos tradicionais do catolicismo.
A era deles agora terminou, mas se a igreja pretende manter suas facções atuais unidas por um longo período ainda há necessidade de uma síntese; a mera coexistência provavelmente não é sustentável. (A atual tentativa dos prelados alinhados a Francisco de basicamente esmagar a missa em latim mostra a rapidez com que ela cede.) Algum tipo de ponte mais forte teria que existir entre as visões de mundo de McElroy e Pell para que seus sucessores ainda compartilhassem uma igreja em 2123.
Isso é imaginável? Como alguém que basicamente concorda com o diagnóstico de Pell, posso ler McElroy e encontrar pontos de discussão razoáveis, particularmente quando ele fala sobre o papel das mulheres católicas na governança da igreja. Em teoria, pode-se imaginar um catolicismo com mais freiras e leigas em cargos importantes que mantém seus compromissos doutrinários centrais, assim como —para tirar da recente entrevista do papa— se pode imaginar uma igreja vigorosamente oposta à discriminação injusta ou à violência estatal contra pessoas gays que também ainda se atém à regra da castidade e à centralidade do casamento sacramental.
Mas as sínteses não podem ser traçadas apenas no papel; elas têm que viver nos corações dos crentes reais. E agora a tendência é para diferenças irreconciliáveis, para uma visão do futuro do catolicismo, em ambos os lados de suas divisões, onde a discussão atual só pode ser resolvida com quatro palavras simples: nós vencemos; eles perdem.
Fuente FOLHA DE S.PAULO