Athenia Rodney é produto da mobilidade social que Nova York prometia aos negros americanos no passado. Ela cresceu em bairros de maioria negra no Brooklyn, estudou em escolas públicas e cursou faculdade de artes com bolsa de estudos integral. Depois disso, abriu uma empresa própria de planejamento de eventos na cidade.
Mas, com sua família crescendo, ela se viu morando num apartamento alugado de um quarto, com seus três filhos dividindo um beliche na sala. Era difícil inscrevê-los em programas nos quais pudessem ter acesso a espaços verdes ou aulas de natação. Olhando para as postagens de amigos em redes sociais mostrando trampolins em quintais amplos na Geórgia, a solução ficou clara para ela: sair de Nova York.
No verão passado a família comprou uma casa de cinco quartos em Snelville, na Geórgia. “Estava ficando cada vez mais difícil criar meus filhos em Nova York”, disse Rodney.
Os Rodneys fazem parte de um êxodo de moradores negros de Nova York. De 2010 a 2020, uma década na qual a população da cidade cresceu de modo surpreendente graças ao aumento dos residentes asiáticos e hispânicos, o número de residente negros diminuiu. Esse declínio refletiu uma tendência nacional de profissionais negros mais jovens, famílias de classe média e aposentados que estão deixando cidades no nordeste e Meio-Oeste e indo para o sul do país.
O declínio é mais nítido entre os nova-iorquinos mais jovens: o número de crianças e adolescentes negros que vivem na cidade caiu mais de 19% de 2010 a 2020. E os dados relativos a matrículas escolares indicam que essa queda continua. As escolas perderam alunos de todos os grupos demográficos, mas a perda de crianças negras tem sido muito mais acentuada, devido ao êxodo de famílias e à queda do índice de natalidade das mulheres negras.
Os fatores que impelem famílias como os Rodneys a deixar a cidade são muitos, incluindo preocupações com a qualidade das escolas, o desejo de viver mais perto de seus parentes e as condições habitacionais apertadas. Mas muitos dos entrevistados para esta reportagem apontaram para uma causa principal: o custo sempre crescente de criar seus filhos em Nova York.
As famílias negras que buscam oportunidades em lugares onde empregos e habitação são mais fartos estão encontrando novas chances de prosperar. Mas o êxodo pode modificar a composição de Nova York num momento em que o poder político negro está em alta. Isso preocupa lideranças negras, além de economistas que apontam para uma escassez de mão de obra em setores como a enfermagem, que tradicionalmente têm participação forte de profissionais negros.
O cineasta Spike Lee, que há anos promove Nova York, receia que a cidade fique mais cara e menos acessível, especialmente para pessoas não brancas, que tanto contribuíram para a cultura nova-iorquina, desde o nascimento do hip hop em South Bronx até artistas como Alvin Ailey e Jean-Michel Basquiat.
“É realmente triste porque a realidade é que Nova York deixou de ser uma cidade acessível”, disse Lee. E, se negros não têm condições econômicas de viver nela, “podemos seriamente dizer que Nova York não é a maior cidade do mundo.”
Eric Adams, o segundo prefeito negro de Nova York, prometeu criar uma cidade economicamente acessível, para frear “a hemorragia de famílias negras e pardas”. Sua campanha para prefeito foi erguida em parte sobre uma biografia que reflete as raízes da comunidade negra na cidade: seus pais vieram do Alabama durante a Grande Migração, ascenderam da pobreza no Brooklyn para a classe média em Queens, compraram casa própria, e seus filhos estudaram em escolas e faculdades públicas.
Famílias negras mais jovens dizem que essa trajetória ficou mais difícil. A alta inflação e a turbulência do mercado de imóveis de aluguel, com o recuo da pandemia, têm prejudicado nova-iorquinos de todas as origens. Mas as famílias negras estão muito atrás das brancas em matéria de ser donas de casa própria e de acúmulo de patrimônio. Sua renda anual média é de US$ 53 mil (R$ 274 mil), comparada com US$ 98 mil (R$ 507 mil) no caso das famílias brancas, segundo os dados de recenseamento mais recentes.
Ruth Horry, 36, é uma mãe negra que passou anos vivendo em sucessivos apartamentos no Brooklyn infestados de baratas e roedores, tendo que mudar-se repetidas vezes em função de aumentos de aluguel. Ele e suas três filhas acabaram indo parar no sistema de abrigos da cidade. Num abrigo em Queens, a pia era tão pequena que Horry levava suas filhas para lavar o cabelo no banheiro de um McDonald’s próximo.
“As condições de qualquer lugar que eu tinha condições de pagar eram medonhas”, comentou. “Eu estava tão farta daquilo.”
No final de 2019 ela se mudou para Jersey City graças a um programa da prefeitura de Nova York conhecido como programa de Assistência Especial Única que transfere famílias carentes para habitação permanente com um ano de aluguel pago adiantado. A queda no custo de vida transformou sua vida, disse Horry. E ela está pensando em mudar-se para o Sul do país para economizar ainda mais.
“Não recebo auxílio-alimentação, benefício social nem ajuda com o aluguel”, disse Horry, que hoje vive num apartamento de dois quartos e paga o aluguel mensal de US$ 1.650 (R$ 8.540) com o salário que recebe de uma ONG que ajuda famílias no bairro de Brownsville, no Brooklyn. “É uma sensação fantástica.”
O êxodo de residentes negros de Nova York vem beneficiando o Sul do país, especialmente. A economia da região está prosperando com a chegada de pessoas de Nova York e de outras áreas do norte dos EUA.
Mas Regine Jackson, professora no Morehouse College, em Atlanta, e estudiosa de padrões migratórios, disse que, ao mesmo tempo em que mais nortistas negros tomam a decisão de partir –que muitas vezes provoca tanto alegria quanto tristeza–, ainda não está claro se o Sul vai conseguir lhes oferecer as oportunidades maiores que eles buscam.
Eles podem ter ficado desiludidos com a vida no Norte, disse Jackson, mas ainda há problemas no Sul. “Houve muitos avanços desde o movimento dos direitos civis, mas ainda há muita coisa por fazer”.
A escassez de imóveis residenciais em Nova York continua, e os aluguéis permanecem altos. A governadora Kathy Hochul prometeu recentemente construir mais de 800 mil novas unidades habitacionais em todo o estado nos próximos dez anos –o dobro do que foi erguido nos últimos dez.
Christie Peale é diretora da ONG Center for New York City Neighborhoods, que promove a aquisição de casa própria a preços mais acessíveis. Para ela, é preciso um esforço mais decisivo nessa área.
“Nosso receio é que a cidade se torne mais branca e mais rica e que as oportunidades de aproveitar o mercado forte estarão abertas apenas a investidores, pessoas com alto poder aquisitivo”, disse Peale.
De acordo com dados do censo, 31% da população de Nova York hoje é branca, 28%, hispânica, e quase 16% é asiática. A população branca se manteve mais ou menos igual, mas a população asiática cresceu 34% e a hispânica, 7%, segundo os dados.
A perda de famílias negras já vem tendo consequências importantes para o sistema de ensino. Algumas escolas encolheram, e professores tiveram que ser remanejados devido à queda nas matrículas. Nos últimos cinco anos as escolas públicas perderam mais de 100 mil alunos. É uma crise que também afeta outros distritos urbanos como Boston e Chicago. Em 2005, alunos negros compunham 35% dos estudantes do ensino primário e secundário em Nova York; hoje eles representam perto de 20%.
A administração vem procurando aumentar o acesso a caminhos seletivos, como o programa de Nova York para alunos talentosos. Mas os pais receiam que, em um sistema profundamente segregado, escolas que recebem sobretudo alunos negros possam ser mais atingidas em rodadas futuras de cortes nos orçamentos das escolas e que a queda dos recursos e os cortes aos programas provoquem mais êxodos.
Fuente FOLHA DE S.PAULO