Se quer partir para ficção, por que Fox News não apresenta Harry Potter?

Provando que os EUA adoram uma ficção, Tucker Carlson, da Fox News, recentemente documentado em tribunal como mentiroso, é o maior âncora de televisão no país.

O que é mais preocupante é que ele agora usou novas imagens —entregues a ele apenas e a mais ninguém pelo presidente republicano da Câmara, Kevin McCarthy— para colocar em dúvida que o 6 de Janeiro foi uma insurreição.

Como assim? Por que ele foi o único a ter acesso a essas imagens? E se a Fox quer transmitir ficção, por que não escolhe algo em que é mais fácil acreditar, tipo Harry Potter?

Usando apenas alguns minutos das 41 mil novas horas de imagens filmadas sem violência, Carlson corajosamente acusou a imprensa e o comitê investigativo de agir como propagandistas, dizendo que parecia tudo “coordenado” porque todos eles caracterizaram o que ocorreu como uma insurreição fatal.

É mais ou menos como eu, que sempre tive a impressão de que essa história de todo o mundo achar que você tem que usar calças em um jantar com outras pessoas e dizer que eu estou “deixando todo mundo constrangido”, se deve a uma conspiração. É tudo propaganda esquerdista.

Ele retrata o que aconteceu como tendo sido, em grande medida, pacífico. A bem da verdade, tirando a invasão armada e à força do Capitólio, as 300 pessoas indiciadas por atacar policiais, as cem pessoas feridas, as cinco mortes, os explosivos improvisados plantados na área, os chamados pelo assassinato de políticos eleitos que tiveram que se proteger atrás de barricadas em esconderijos, mais o prejuízo à democracia… Tirando tudo isso, foi bastante pacífico.

É mais ou menos como se você ignorar minha esposa, eu sou em grande medida solteiro. Ou se você ignorar a nudez, a pornografia é uma coisa bastante sadia. São apenas irmãos postiços fazendo sua lição de casa e ficando presos numa escada.

Do mesmo modo, se você ignora os documentos judiciais recentes que revelam, por meio das mensagens privadas deles, que Carlson e outros na Fox News não acreditavam nas alegações de fraude eleitoral que promoveram e que levaram a essa insurreição (e que a emissora coordenou sua cobertura estrategicamente com Trump e outros republicanos para ajudar a influenciar as eleições e a opinião pública), eles são uma organização digna de crédito, que merece que você dê ouvidos a ela.

Então por que McCarthy entregou essas imagens exclusivamente a um mentiroso de má-fé comprovada? A resposta óbvia pode ser que é uma manobra que visa erodir a percepção pública do fato [o 6 de janeiro] antes do comitê recém-anunciado que está investigando… o comitê que investigou o 6 de janeiro. Sendo que Tucker não acha que nada disso seja “coordenado”.

Quem encabeça esse comitê é Barry Loudermilk, que foi acusado pelo comitê original do 6 de janeiro de conduzir um dos participantes da insurreição num tour suspeito no dia 5 de janeiro. Como prova, usaram imagens de vigilância de Loudermilk levando no tour privado um homem que fez muitas fotos e vídeos de áreas do prédio e suas escadarias.

Isso foi acompanhado de um vídeo desse mesmo homem invadindo o Capitólio e pedindo violência contra vários congressistas, que identificou por seus nomes. Tirando isso, ele pareceu em grande medida pacífico.

Isso não comprova conclusivamente que Loudermilk estava em conluio com os insurretos, mas prova conclusivamente que ele não é o candidato ideal para comandar o maldito comitê. Se bem que, se precisarem de ajuda para filmar as audiências, Loudermilk poderia chamar seu amigo a quem levou naquele tour. O sujeito parece ser hábil com câmeras e já conhece o recinto da Câmara.

McCarthy defendeu o fato de ter dado os vídeos a Carlson, dizendo: “É uma questão de transparência”. É verdade porque, para mim, é uma mentira transparente.

Depois que as imagens atraíram críticas acirradas da polícia do Capitólio e até de republicanos destacados, quando foi perguntado o que achava delas, McCarthy disse que não havia assistido. É como quando o vilão cruel joga um fósforo atrás de si e sai caminhando tranquilamente enquanto a cidade explode às suas costas.

Então, Fox, por que não colocar Harry Potter no ar em vez disso? Afinal, o que é mais crível: uma fantasia em que um estudante nerd de uma escola particular, dotado de poderes incríveis, luta para salvar o mundo numa batalha entre o bem e o mal, ou Harry Potter?

Fuente FOLHA DE S.PAULO